Site dos estudantes do curso de gastronomia da UNIRIO - grupo A Nata - para desenvolvimento do TCC

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Culinária e alta cultura no Brasil

Carlos Alberto Dória

A sofisticação do gosto é um requisito da sociedade de consumo na medida em que cria novas necessidades e, por isso, paulatinamente, a culinária tornou-se moda entre nós. Uma classe média que se quer mais cosmopolita já não pode continuar no arroz-com-feijão. O mercado de trabalho estreito também empurrou jovens que cursam universidades para esse domínio que acreditam promissor. Se na cozinha antes se ouvia só o batuque de negros (“batuque na cozinha sinhá não quer”, lembra o samba) agora é possível ouvir (e comer) suspiros de mocinhas e mocinhos bem nascidos. Por isso o próprio mercado editorial, mestre em correr atrás dos fatos, apresenta-se pujante nesse segmento.
Boa parte do que se edita sobre culinária, porém, não passa de subliteratura, sem ensejar a reflexão necessária para os principiantes nesta disciplina. São livros que ensinam o que já se sabe, compilação de receitas de pessoas com destaque na mídia (a cozinha de Pavarotti, de Sophia Loren e coisas assim) ou, ainda, obras introdutoras de confusões persistentes, como entre culinária e nutrição (cozinha light, por exemplo).
A falta de tradição reflexiva nesse domínio permite mesmo tudo, como o recente caderno especial da Folha de S. Paulo, dedicada à comemoração nacionalista dos 500 anos de culinária. Ou a imprensa especializada, como a revista Gula, que se destaca por apresentar o comer bem como algo para poucos, um domínio vedado a quem não tem muito dinheiro ou “berço”(as receitas “impagáveis” dos Orleans e Bragança...) e que é capaz de celebrar com ares de grande descoberta o cardápio banal do último baile da Ilha Fiscal.
A cozinha moderna é bastante democrática nos países que originalmente desenvolveram essa tradição no Ocidente, em especial a França e a Itália. Ao contrário da falta de foco entre nós, que ainda tateamos o caminho a percorrer, a culinária é, entre os europeus, reconhecidamente, um domínio da alta cultura pelo menos desde os tempos da Revolução Francesa e nascimento da cozinha burguesa. Mas falar de culinária, assim como falar de música clássica ou de literatura, é abordar um tema que exige conhecimentos prévios que vão além de um simples código sensorial de decifração do que vai à boca.
A culinária é algo mais do que compilação de receitas e modos de fazer, pois trata da educação de um dos nossos cinco sentidos: o paladar. Uma educação que se dá tanto em termos históricos como individuais. Do primeiro enfoque tratou, entre nós, Câmara Cascudo em sua monumental História da alimentação no Brasil. Do segundo, parece que só agora surge obra digna de menção: A saga da comida, de Gabriel Bolaffi.
É curioso: esse livro surge como “divertimento de professor aposentado”, indicando, já de início, que a universidade não admite entre os campos ativos dos saberes a educação do paladar (no entanto nela se abriga a educação da audição e da visão). Mas Bolaffi, além disso, reúne para sua empreitada outras qualidades. Não é apenas o professor aposentado da FAU, nem o sócio pioneiro do condomínio do poder que lhe permite dividir, em Ibiúna, a piscina com o atual presidente da República ou com o ministro da Saúde. Durante muito tempo foi também o ativo dono de um modesto restaurante a beira-mar, na Praia do Perequê no Guarujá (SP), onde sempre se comeu uma comida barata e honesta.
O mais valioso em seu livro é, contudo, a eleição do ponto de vista da narrativa: a cozinha universal sob uma perspectiva brasileira. Bolaffi se debruça sobre o que assimilamos do mundo e do território nativo nesses séculos de breve existência tropical. Percorre a história culinária brasileira com um olhar moderno, postado no limiar do século XXI, sem nacionalismos desnecessários e sem deslumbramento com modismos ou falsas novidades (por exemplo, a descoberta tardia pela burguesia cabocla do tartuffo bianco d´Alba). Ele discorre sobre as matérias-primas com raro conhecimento e ensina a feitura de pratos simples com rara clareza. Neste sentido, é o livro do anti-segredo culinário sem pretender desvendar nada de absolutamente novo. “Meu propósito foi escrever um livro capaz de fornecer receitas claras e eficientes e que ao mesmo tempo ensine o leitor a cozinhar e apreciar o sentido – e às vezes até o sentido histórico – do que está fazendo e do que irá levar à mesa e comer.”5. É extraordinário, por exemplo, o capítulo sobre o arroz: suas variedades naturais, a domesticação, o uso no Oriente e no Ocidente, a cultura no Brasil e, como não poderia deixar de ser, os preparos mais importantes, inclusive dos velhos risotti em moda moderna entre nós a partir da globalização.
Dizia Brillat Savarin em seu Fisiologia do gosto – obra pioneira no desvendar para o “terceiro estado” que os prazeres à mesa não eram um privilégio de nascimento e poderiam ser atingidos através da educação – que tão importante quando a técnica culinária para o sucesso de uma refeição é a conversação que se possa estabelecer sobre o que se come, pois há uma sedução ligada ao comer que não vem da panela. Ao contrário dos demais sentidos que são invadidos por estímulos externos (quando formamos nosso juízo sobre uma música ou sobre um quadro, por exemplo, os sons e as cores já nos sensibilizaram), o paladar necessita de aquiescência prévia: é preciso abrir a boca para que a comida nos invada e sensibilize. Primitivamente, abrimos a boca para a comida que as mães nos apresentam; depois, tendemos a achar que bom mesmo é o que nossas avós preparavam; e se nos aventuramos fora de casa, queremos um chef renomado indicando o que comer. Esta entrega comedida, conservadora mesmo, só pode ser superada quando se atinge um novo patamar de conhecimento sobre culinária e gastronomia – quando penetramos o domínio da alta cultura. Coisas que obras como a de Câmara Cascudo e, agora a de Bolaffi, permitem ao brasileiro de formação média.
Apesar da alvissareira literatura, são várias as barreiras culturais ao desenvolvimento do conhecimento culinário em nosso país. A primeira delas, à qual nos referimos en passant, diz respeito ao lugar mesmo da cozinha na nossa sociedade: lugar de negros, de empregados, de “gente mecânica” ou de “baixa mão” para usar o linguajar colonial -- domínios presididos por segredos. O orgulho e altivez do chef cuisine francês diz do seu lugar no sistema de poder, lugar radicalmente distinto daquele de uma negra quituteira ou de um proletário nordestino, muitas vezes analfabeto, aos quais em geral cabe comandar esse espaço segregado nas casas ou em restaurantes. Mesmo modernamente, quando essa situação social começa a mudar, o olhar sobre a cozinha é um olhar nostálgico, entremeado de lamentações sobre a diluição do passado rural brasileiro. Basta ler qualquer matéria nas revistas culinárias sobre pratos ditos “tipicos” para se entreouvir esta murmuração. A cozinha brasileira não se aburguesou no seu ideal, no sentido em que a francesa ou italiana se libertaram da cozinha cortesã. A própria noção de “segredo culinário” no qual se baseiam muitos cursos de culinária reflete ainda esse modo de pensar. Na tradição ibérica, o “segredo culinário” nasceu nos conventos, envolvendo especialmente a doçaria, quando as ordens religiosas competiam por favores régios. Depois, por extensão, transformou-se em manto a proteger os “cadernos de receitas” das sinhazinhas, que os ganhavam de suas mães como chaves capazes de abrir o coração de seus maridos (a aventura da “conquista pelo estômago”). Hoje o segredo persiste como defesa de tradições de grupos étnicos restritos, como defesa de rituais familiares ou como reles mercadoria de fácil exploração entre os ignorantes da culinária.
Outras barreiras são mais modernas. Assim como a boa literatura está em geral além do best seller, a boa música além das discotecas, o bem comer está além do fast food ou do modismo da fusion cuisine. No primeiro caso, a idéia de se “comer rápido” nada mais é do que a substituição do ritual em torno da mesa pelos ideais de nutrição sadia ou de uma “ração” balanceada visando o trabalhador de colarinho branco. No segundo, um abastardamento de culturas que se colocam em contato a partir da aproximação propiciada pela globalização.
O restaurante Rapongi de New York anuncia-se como promotor de uma mistura de cozinhas japonesa, tailandesa, chinesa e indiana “executadas com técnicas da cozinha ocidental”. O que essa fusion cuisine significa em termos culturais e gastronômicos? Significa, em primeiro lugar, que pretende levar o comensal a uma visitação gastronômica do Oriente à maneira de um percurso turístico. O resultado prático é a desconstrução das totalidades culturais onde se inserem as várias tradições culinárias. Citemos exemplos: a cozinha indiana tem sido realizada no ocidente à base de óleos vegetais, quando no original um repas indiano só pode ser feito utilizando o ghee (equivalente da “manteiga clarificada” na tradição culinária francesa); o feno grego (Trigonella foenum-graecum), uma especiaria altamente tóxica, de sabor amargo, que é um dos ingredientes do curry e aparece também nas conservas da culinária alemã, tem sido utilizada como tempero para saladas na fusion cuisine americana. Assim, a fusion cuisine consegue de fato exatamente o contrário do que pretende: afasta suas vítimas do conhecimento da cultura e culinária de que diz se apropriar e representar.
Este ponto, porém, merece maior atenção de nossa parte. Para além da modernidade da fusion cuisine, um raciocínio similar se formou entre nós a partir de alguns chefs franceses que se estabeleceram no Brasil nos anos setenta. Uma fusion cuisine cabocla -- se é possível formular esta heresia – esboçou-se na prática a partir da releitura de clássicos da cozinha francesa (como a sauce aux agrumes, utilizada no tradicional “pato com laranja”) elaborada com ingredientes tropicais (maracujá, casca de jabuticaba, etc), dando origem a “novidades” bastante duvidosas. Criação culinária não é o mesmo que alquimia, como parece para os neófitos. Talvez a criação de maior sucesso no século XX tenha sido La pêche Melba, origem do sundae que se difundiu por todo o mundo. Auguste Escoffier (1846-1935) a criou ao tempo do Savoy Hotel, em homenagem à diva Nellie Melba que estreava a ópera Lohengrin no Covent Garden. Escoffier foi provavelmente o mais importante sistematizador da cozinha ocidental do século XX; graças a ele a cozinha ganhou a dimensão industrial com a qual se apresenta na hotelaria moderna (redes Carlton, Savoy, Plaza, Ritz, etc.). No entanto, sua grande criação popular não foi além dessa delicada sobremesa: o pêssego Melba com sorvete de baunilha. De seus livros (La guide culinaire – uma obra técnica em linguagem acessível e de valor inestimável -- e Ma cuisine – uma preciosa coletânea de receitas francesas) sequer existem traduções para o português... Mesmo Savarin, cuja importância na história da culinária ocidental é inegável, parece que só nos legou uma única criação culinária: a massa que leva seu nome, utilizada para a preparação do babá au run, que nada mais é do que uma massa de brioche com uma formulação onde varia apenas a quantidade de manteiga. Criação original em culinária é tão difícil como criação musical ou literária.
Este paralelo, aliás, não é sem propósito. A culinária tem a mesma estrutura de uma língua. Trata-se de um sistema simbólico que tem sua sintaxe, seu vocabulário, suas conjugações. O sistema ocidental – conhecido por “culinária francesa” mas que engloba numa mesma lógica as demais cozinhas do ocidente – é radicalmente diferente dos demais sistemas, inclusive o oriental, e entre esses sistemas pode haver enriquecimento vocabular, trânsito de matérias-primas, mas jamais “fusão” ou síntese. Assim como o esperanto não é uma língua, as fusões são arremedos culinários. Entre nós, brasileiros, uma natureza tão pródiga pode aportar contribuições imensas à culinária ocidental, assim como a bossa-nova e o jazz se aproximaram no passado, mas jamais haverá fusão.
Deste ponto de vista, a própria idéia romântica de uma culinária nacional – que é uma transposição para o fogão da lógica de formação do “brasileiro” a partir das contribuições étnicas dos negros, índios e europeus – é mais um devaneio do que uma originalidade culinária. O sistema ocidental configura, em culinária, um espaço de trabalho que é ao, mesmo tempo, um trânsito entre o domínio da natureza (o “cru”-- a ostra, por exemplo) e a cultura, até o limite da deterioração dos alimentos (o “podre” – as carnes “fesandadas”, por exemplo). A culinária – domínio intermediário do “cozido” – corresponde aos vários esforços técnicos para “reter” a natureza transformada no espaço onde se converte em alimento culturalmente determinado. Técnicas como a cocção, os embutidos, a salgação, a refrigeração, a pasteurização, foram se desenvolvendo com o tempo para alongar a vida dos comestíveis. A descoberta do Novo Mundo e o contato com o Oriente ampliaram a quantidade de matérias-primas sobre as quais pode versar o trabalho transformador do cozinheiro. Da mesma maneira, a culinária brasileira não pode ser nada além da culinária ocidental enriquecida pelas matérias-primas locais ou transplantadas para cá junto com os negros. Não há fusão possível, mas sim tendência à homogeneização que enriquece a culinária ocidental e destrói a nativa.
A História da alimentação de Câmara Cascudo embora nos preste um inestimável serviço histórico e historiográfico não abarca qualquer projeto culinário aproveitável. Pelo contrário: a idéia de “folclorização” da cultural (apresentada como contraparte do mundo erudito) se aplicada à culinária nos faz regredir para antes do nascimento da cozinha burguesa na França, pois restaura a dualidade que até então existiu entre “cozinha do povo” e “cozinha dos príncipes”; e se hoje a cozinha burguesa é universal é porque a sua unificação se deu a par da formação do moderno Estado francês e da generalização da cultura democrática. O mesmo se deu com a culinária italiana ou espanhola, sem prejuízo dos regionalismos que nos remetem à culinária camponesa ancestral na França, Itália e Espanha – para citar apenas os exemplos clássicos.
Para a maturidade da arte culinária entre nós muitas pesquisas ainda precisam ser feitas, preconceitos antigos e modernos necessitam ser afastados para que, com simplicidade, se atinja o significado profundo da lição aparentemente simples que Bolaffi professa: “cozinhar é um constante devir de antigas tradições e contemporâneas inovações que podem e devem ser combinadas com saber, arte, bons senso e bom gosto”. Algumas dessas qualidades são inatas, outras aprendidas com esforço e dedicação. Felizmente sabe-se de pesquisas interessantes em andamento, como a do casal Heloisa e Carlos Bacellar que em breve deverão nos brindar com um levantamento histórico profundo sobre a culinária paulista apoiada secularmente em chácaras, quintais e pomares, através de levantamento original que inclui fontes primárias como os inventários e testamentos e a série Documentos interessantes para a história de São Paulo, do Arquivo Público do Estado de São Paulo. Só assim o amadorismo cederá passo ao profissionalismo e a classe média poderá ocupar novos territórios dentro de casa e em restaurantes. São coisas que nos antecipam obras como a de Gabriel Bolaffi

Carlos Alberto Dória

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