Por Carlos Alberto Dória
A construção de uma Razão Degustadora é o guia iluminista para o consumo moderno do alimento
Se você topar com alguém diante de um café expresso sem açúcar, que afasta a espuma com as costas da colherinha, observa o creme com ares de quem disseca um inseto, leva a xícara ao nariz para sentir o aroma e só depois leva à boca, pode estar certo: está diante de um “barista”.
Não adianta procurar: a palavra não está no Houaiss. Esse tipo de gente que sabe tomar um café corretamente (isto é, com novos e diferentes gestos) é uma novidade, mas já existe até revista especializada em cafés que devem ser tomados dessa forma. O lobby do novo café quer mudar a nossa vida.
Coberto de razão, o crítico Arnaldo Lorençato chamou a atenção, em recente seminário sobre tendências modernas do consumo1, para essa moda brasileira de se “degustar” tudo: vinho, café, chocolate, uísque, cachaça, sal, azeite, e até água... A própria água universal (H2O) parece tão múltipla que uma “trademark” (Pepsi-Cola) não se peja em chamar seu novo refrigerante de sucesso justamente H2OH!
Sem dúvida é mais seguro nos cercarmos de conhecimentos que garantam o insosso da água diante das ciladas de sabores. Mas esta tendência de se buscar guias seguros em meio à incerteza dos sabores sequer é uma moda “brasileira”. Apenas chegou aqui, para nosso espanto, convertendo-se em um novo ramo de negócios e entrando regularmente nos cálculos do marketing da indústria da alimentação, especialmente no segmento de luxo.
A palavra deriva do francês “déguster” e surge no início do século XIX. Ela nos indica que o gosto não é algo imediato e irrefletido. Mas por que já não podemos confiar na primeira sensação que o paladar nos sugere? Como e por que se passa do gosto/não gosto imediato (e infantil?) para o gostar reflexivo?
Degustar é uma prática que nos leva à fronteira onde parece que vamos perder a simplicidade de uma sensação cristalina em troca da complexidade que, a rigor, não permite vislumbrar um final. Degustar é tomar o paladar como um sentido relativamente autônomo que, no entanto, precisa ser educado para nos conduzir entre a multiplicidade das coisas que se escondem por trás da unidade ilusória de sabores. O paladar, guiado pela degustação, é como o cego a quem desejamos levar a reconhecer a luz.
A filosofia da degustação quer dar sentido à experiência sensorial moderna. Situa o indivíduo diante de uma dimensão do comer que, até então, parecia subjetiva, mas hoje se apóia em múltiplas instituições que reconstroem a sensação: laboratórios de indústrias, pesquisas agroalimentares que geram novos conhecimentos sobre os alimentos, desenvolvimento de equipamentos culinários e de mensuração sensorial, ensino de gastronomia e produção literária especializada. O “gosto” torna-se o objeto central do marketing alimentar e, como tal, se inscreve numa nova lógica de vida em que o aspecto subjetivo é acessório.
O primeiro passo dessa filosofia é reconhecer que a autonomia do paladar é falsa. Não por acaso se procedeu à total reformulação da velha teoria sobre a fisiologia do gosto do século XIX, como expressa por Brillat-Savarin na sua bíblia gastronômica (“A Fisiologia do Gosto”). O que este texto tinha de inconveniente era apoiar a noção do gosto exclusivamente nas papilas gustativas, representado a língua a partir de um “mapa” onde o doce se situava na sua ponta, o salgado nas laterais, o ácido no meio e, finalmente, o amargo ao fundo, escorregando pelo abismo da garganta.
Essa classificação começou a se mostrar uma falácia já no início do século XX, quando se descobriu um quinto sabor –o umami–, que simplesmente não tinha representação espacial no tapete da língua. Hoje, sabemos que as papilas são mais sensíveis e versáteis do que se imaginava e que a nova língua que lambe o mundo não se situa apenas dentro da boca.
A moderna fisiologia do gosto, como o físico-químico Hervé This tem apontado, não se enraíza apenas no paladar. Ela reconhece os demais sentidos como instrumentos de apropriação das qualidades dos alimentos (cor, aroma, textura, temperatura; e a “crocância”, que convoca, ao mesmo tempo, o tato e a audição) de modo a constituir uma noção complexa, em que o paladar já não é necessariamente o primeiro solista da orquestra. O próprio “mapa” da língua não resistiu à análise da ciência moderna, ruindo como um preconceito do século XIX e persistindo apenas como um erro dos livros escolares de ciências.
O paladar já não é o cego a quem ensinamos a reconhecer a luz. A superação da cegueira não encontra solução no olho, mas nos demais sentidos; do mesmo modo o gosto se enraíza na totalidade do ser e –por que não dizer?– no próprio discurso sobre a comida. Nessa nova condição, o paladar se torna um guia exploratório do mundo, deixando na sua pré-história a fase na qual era o identificador de quatro sabores.
Para a filosofia baseada na moderna fisiologia do gosto o indivíduo é portador de sentidos flutuantes, flanantes, que já não podem se fiar em “instintos” ou em tradições que nos enganam não porque sejam fisiologicamente falhos, mas porque são socialmente instáveis. “Comer bem” já não é comer o que se gosta mais por força de hábitos herdados da infância, mas um ato que deve realizar, a um só tempo, uma função nutricional e uma função estética.
Se o cálculo de calorias aprofunda a nossa feição de máquinas biológicas, o trabalho sobre a cor, a forma, a textura, o aroma do que vai à boca, aponta para um outro valor que emerge como experiência estética associada ao comer. A tradição ocidental começa a explorar essa dimensão do comer pela manipulação do prato que, nos anos 1970, é levado à mesa pela primeira vez como um “arranjo estético” acrescido pelo chef, seguindo uma clara influência japonesa.
Mais tarde, forma-se uma especialidade nova, chamada “desenho culinário”. Essa jovem disciplina nasce entre 2002, com o trabalho do desenhista Marco Brétillot sobre a forma, a cor e a textura de uma preparação, e 2006, quando a Fundação Raymond Loewy concede o prêmio de desenho europeu a Ferran Adrià, que, como se sabe, também participa da Documenta (mostra de artes na Alemanha). Como o próprio Adrià diz, “a cozinha é uma linguagem mediante a qual se pode expressar harmonia, criatividade, felicidade, beleza, poesia, complexidade, magia, humor ou provocação”2.
Essas novas funções da alimentação não brotam das panelas (e nem podem ficar a cargo das avós e seu “savoir faire”). Derivam do seu novo lugar num mundo que está tão distante do comer cotidiano que parece mesmo algo extraordinário, ou uma confissão de fraqueza, que um chef possa dizer, numa entrevista qualquer, que gosta de pastel de feira. O poder do chef advém não de suas preferências ou sensibilidade de paladar, mas dessa espécie de função sacerdotal que se atribui a ele: além do sabor, ele “combina” cor, aroma, textura, crocância, temperatura na construção de um espetáculo de arte evanescente, em que o comensal ultima o sacrifício.
A gastronomia já não tem uma “missão”, como foi a de “aliviar” exageros no período da nouvelle cuisine; hoje, partindo da simplicidade máxima, deve construir texturas, combinações e efeitos visuais impactantes sem perder pé na excelência das matérias primas. Nas discussões modernas –e esta parece ser a base da nova crítica gastronômica– avultam os aspectos estéticos dos pratos, especialmente os escultóricos e cromáticos e as técnicas ilusionistas.
Mesmo o prato, onde se apóia o alimento, praticamente desapareceu depois de mudar várias vezes de forma e de cor -valendo hoje promover a composição alimentar sobre uma superfície qualquer, não delimitada a priori por uma borda. Aqui temos, transposta para a gastronomia, a mesma discussão sobre o suporte das artes plásticas.
A multiplicação dos objetos
Só a Razão Degustadora pode nos conduzir por esse universo do sentido moderno do comer ao qual o hábito cotidiano já não nos dá acesso. O seu ponto de partida é aquele da multiplicação dos objetos subsumidos na aparência de unidade de um sabor qualquer. Excelentes exemplos são os azeites, os vinhos e o sal ou a água. Sob esses produtos, desvenda-se a lógica dos varietais orgânicos e dos “terroirs” como fundamentos das diferenças entre as coisas que vão à boca.
Não faz muito tempo, os azeites nos chegavam pela sua procedência: portugueses, espanhóis, gregos, italianos, franceses etc. Quanto à qualidade, eram “refinados”, “virgens”, “extra virgens”, de “primeira prensagem”. Hoje, a indústria do azeite espanhol, por exemplo, consegue diferenciá-los pelas variedades de azeitonas das quais derivam: picual, cornicabra, hojblanca, lechin de Sevilla, empeltre, arbequina, verdial, picudo.
A cada uma dessas aplicam-se as designações de qualidade, multiplicando-se por 32 os produtos que, antes, se reduziam a quatro. Assim, o azeite, a partir do final do século 20, tornou-se coisa múltipla, polifacetada nos usos, e não algo que simplesmente se coloca sobre a salada. Do ponto de vista do consumidor, ele nunca saberá o que está comendo se antes não passar pelo indispensável treinamento que só a degustação dirigida propicia.
Também a uva carmenère, por muito tempo tomada por extinta, foi desentranhada dos vinhedos chilenos por um enólogo francês, que foi capaz de “vê-la” pela aparência distinta das suas folhas, disfarçada entre o que se acreditava ser a variedade merlot. Desse modo multiplicou-se o que antes era o merlot.
Darwin já havia mostrado como o homem opera como selecionador das espécies naturais ao desenvolvê-las sob domesticação, frisando os caracteres que lhe são úteis. As raças de cães são o melhor exemplo desses seres construídos pelo homem.
A novidade atual reside na atenção que o capitalismo dedica à natureza, apontando pequenas diferenças construídas no passado e que não se mostravam úteis, sendo abandonadas ou “esquecidas”; agora, os sentidos precisam ser reeducados para dar conta da multiplicidade mascarada. Exige-se, acima de tudo, refinamento e sutileza analítica, tanto nos laboratórios das indústrias como no prato.
Outra fonte de variedade é a origem ou o “terroir”. A teoria do “terroir” se baseia na noção mágica de que os atributos do lugar –seja a terra, o clima ou o próprio trabalho artesanal de uma comunidade- transmitem qualidades singulares aos alimentos. Nesse caso as variedades valem não pelos caracteres genéticos, mas pela sua adaptação: a variedade shiraz seria distinta na África do Sul, na Austrália ou na França; a malbec, tão bem adaptado à Argentina, teria nascido no lugar errado (Cahor, França) para atravessar o oceano e, finalmente, encontrar o seu verdadeiro lugar; o frango de Bresse (França) seria inconfundível no seu paladar, e assim por diante.
O próprio “mundo inanimado” aparece como múltiplo. Sabemos que, basicamente, existem dois tipos de sal: o sal marinho, que é extraído através da evaporação da água do mar, e o sal de rocha, conhecido como sal-gema, retirado de minas subterrâneas que são mares e lagos pré-históricos que secaram.
A diversidade de origem e de cristalização pode ser retida no produto alimentar. Temos o sal rosa do Himalaia, que é um sal-gema; e os sais marinhos, como o de Guérande, na França, considerado único pelo seu “sabor e aroma”, uma “flor de sal”; o sal escamado da Nova Zelândia, o sal alaranjado das ilhas Aloha e assim por diante.
Num mundo comestível que se multiplicou, as próprias palavras se mostram insuficientes para dar conta da diversidade. É preciso criação lingüística para descrever o novo mundo. O caso do vinho é o mais expressivo. Existe um enorme léxico para descrever o vinho. São mais de 600 palavras ou “descritivos” que funcionam bem no que se refere aos aspectos relacionados com a fisiologia e a percepção sensorial, mas claudicam quando a questão é a tradução terminológica e a comunicação3. A própria iniciação nesse vocabulário toma a feição do aprendizado de uma nova língua. Cursos são pagos para aprender a degustar, discorrer sobre as qualidades do vinho e concluir qualquer coisa a respeito que nos dote de um discurso legitimista.
Significados não explícitos da degustação
Nunca se é o mesmo depois de um curso de degustação. E não se pode dizer que sua função seja apenas formar o novo paladar. Alguns antropólogos apontam uma função pouco nobre para a nova cultura do vinho: ela esconde uma nova política sobre a embriaguez.
Para eles, há em curso uma sibilina tentativa de se combater o alcoolismo através de uma cultura do gosto e, por isso, denunciam a confusão entre alcoolismo e alcoolização –assim como o culto ao terroir, à paisagem bucólica dos vinhedos e a “volta à tradição”- que nos dispensam de discutir a dosagem, o risco calculado, a embriaguez, a alteração dos estados de consciência e o simples fato de que "o consumo de vinho diminui à medida que avança o dos antidepressivos"4.
1 - Seminário “Pensando o consumo hoje: Novas Abordagens”, realizado nos dias 14, 15 e 16 de maio de 2007 na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).
2 - “El arte efímero de Ferran Adrià”, no jornal “La Vanguardia”, 6 de julho de 2006.
3 - Ver Carlos Alberto Dória, “Estrelas no Céu da Boca: Escritos Sobre Culinária e Gastronomia”, Ed. Senac, São Paulo, 2006, págs. 174 e ss.
4 - “Le vin, entre hygiènisme et snobisme, l´ivresse oubliée”, entrevista com Christian Escaffre, psiquiatra e alcóologa, e Jean-Pierre Rozon, enólogo do Inra, realizada em 8 de janeiro de 2007: www.agrobiosciences.org/imprime.php3?id_article=2093.
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